Para falar do deserto, ela queria alguém. O café esfriava em cima da escrivaninha azul - fora difícil encontrar uma que lhe agradasse: sempre foi mais complicada em relação a gostos, perfeccionista desde criança. Lembrava como havia achado aquela maravilha, foi como a chamou, "maravilha", num brechó lá perto de Santa Teresa, ô bairrozinho aconchegante.
Vai levar?, perguntara o homem do caixa, sorrindo divertido por trás dos óculos pretos. Tinha um ar de riso diferente, sorria charmoso, mas não com a boca - e isso era o mais interessante -, porém com os olhos.
A escrivaninha azul, vais levar?, indagou ele, um pouco mais alto, enquanto ela se virava surpresa - tinha mais alguém ali? Ora, nem percebera, era engraçadíssimo como podia passar tempos e tempos entretida consigo, afinal, era tanta coisa para pensar.
- Vou, vou, acho que sim. Me apaixonei por esta escrivaninha, e azul? Quantas ideias não vou ter, sentada com ela na madrugada, e o cheiro de madeira velha tornando tudo mais... Desculpe, o que você perguntou? Ah, sim: vou levar.
- Acontece às vezes quando você desacostumou a ter alguém pra conversar. - Ele falou, aquele sorriso enigmático outra vez.
- Desculpe? Não entendi o que você disse.
- Eu disse que pensar alto acontece às vezes quando você se desacostumou a ter alguém para conversar.
Ela parou por um segundo. O quê?
- E como você saberia disso? - Perguntou.
Ele sorriu, sincero, desta vez com os lábios:
- Sua expressão confusa quando pensa antes de falar. Conheço bem, cultivei-a por um bom tempo.
Ele era bonito. Cabelos escuros, dentes branquíssimos quando se deixava sorrir, e aqueles olhos castanhos que pareciam, sei lá, ela pensou... Guardar o mundo?
- Digamos que estejas certo... Que conselho me darias, então? - Decidiu entrar na brincadeira. Dividindo a casa com mais três pessoas, desacostumar-se a conversar seria algo até bem-vindo... Riu sozinha.
- Ora, o que eu fiz. - Ela esperou, curiosa. - Escreves um livro. Poderás contar até teus sonhos mais loucos, que não serás julgada por ninguém. Quando isso já não for o bastante, começarás a pôr no papel tudo aquilo que sempre quis, mas nunca achou que conseguiria. E quando se cansar, tirarás, enfim, essa expressão confusa do rosto.
O que diabos? Ele agia como se escondesse um segredo lá no fundo; o que seria? Um amor não-correspondido não, muito clichê.
- Tudo bem... Como se chama?
- Paulo.
- Paulo? O nome do meu pai.
- Ele deve ser um cara legal.
- E é.
Sorriram um para o outro. Paulo, misterioso. Andréa, encantada.
- Vais levar, então?
- Ah. A escrivaninha. Vou levar. Gostei muito.
- Lembra de mim sentada com ela na madrugada, e o cheiro de madeira velha. - Ele pediu.
- Certo, claro. Não daria para esquecer - pensou alto outra vez.
Ele riu. Ela ficou vermelha. Maldita mania de falar os pensamentos em voz alta.
- Eu divido o apartamento com mais três, é gente falando comigo toda hora, se você soubesse... Até pedir para fazerem silêncio, eu peço. É muita gente falando.
- Imagino.
- Sério.
- Tudo bem.
Parou por outro segundo. Por que se sentia uma criança mal-comportada perto dele? Não era justo. E como se não conseguisse parar de falar, ou apenas não quisesse, continuou:
- Porque não é verdade o que você disse. Mas eu achei curioso, então pedi um conselho, e você me falou para escrever um livro, e até achei engraçado, porque de fato eu escrevo, sabe, e não como um hobbie, na verdade estou esperando a resposta de uma editora no momento, que nunca chega, mas tudo bem, sou paciente, e enquanto isso tenho pessoas para conversar, sim, me distraio até, enquanto espero.
- Eu quis dizer que te falta alguém pra ligar às 3 da manhã sem se sentir constrangida.
Hein? Fazia calor lá dentro, embora as janelas estivessem todas abertas e fosse julho. Mas, afinal, era o Brasil, país de uma estação só, sol-e-praia.
- Um amigo de infância, sabe? Que escuta o que tu pensas antes mesmo de tu falar; vi que te faltava isso. Mas sempre falta algo, é o que te empurra pra vida, entendes? Nada pode ser completo, senão a pessoa enlouquece, não consegue continuar, porque não existe mais sentido. Eu tenho cá pra mim que ser humano não vive sem problema: tem que ter algum, se não, inventa. É uma maneira de achar que estás evoluindo, sabe? Porque, querendo ou não, um dia você resolve esse problema e ele fica pra trás; tem gente que inventa três ou quatro problemas de uma só vez, aí demora mais pra resolver.
- E se ninguém inventasse, aí a vida não teria sentido?
- Exatamente.
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