domingo, 23 de janeiro de 2011

A Caixa

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Começou assim. Inocente, sem imaginar o que aquilo se tornaria, abriu a Caixa e guardou só as lembranças. O que já era muito, quase uma vida, se continuasse assim sabia que nunca iria superar, ou esquecer, ou não doer, ou qualquer que fosse o nome para aquilo lá. Decidiu então enterrar, apertou as mãos com força contra a cabeça e filtrou poucas lembranças: não as mais amargas, nem mais felizes, apenas quaisquer lembranças; era bastante para o começo.

Então veio o alívio, a sensação de crescente alívio se apossava do corpo, da mente, da vida, tinha esperanças, descobrira. Sorria outra vez. Já não sabia mais como era acordar sem a tal angústia, afinal tinha desaprendido a desinventar a dor, e mesmo que não estivesse totalmente curada, aquilo já era um começo para a luz que enxergava à frente. "Finalmente", suspirou. Fechou os olhos e dormiu como há tempos não dormia.
Mas todo ciclo tem um novo ou velho ou tanto-faz recomeço, e o que era aquilo senão apenas mais um ciclo? Veio a sensação de vômito na garganta outra vez, o coração apertou, lágrimas não adiantavam mais. Correu do vazio, abriu a Caixa e vomitou descontroladamente. Vomitava agora não só lembranças como também objetos, todos eles carregados de significados. Era como qualquer droga, depois do início desesperador vinha a calmaria. Sentiu a brisa leve invadir o peito, como era bom, não queria que aquilo passasse nunca mais: "ó, brisa, fica", pediu.
E ficou, mas como previsto, até a própria sabia, somente por um tempo. E cada vez que aquela brisa passava, e o sonho desaparecia, e a angústia voltava, a sensação de enjôo constante fazia sua parte.
Começou a despejar na Caixa com muito mais frequência do que antes; já tinha ouvido casos assim, na televisão, aqueles filmes absurdos que um dia assistiram juntos, e riram, embaixo do cobertor, no frio, entrelaçados, na época eram um só, felizes&unidos, esquece, esquece isso, cadê a Caixa para esconder lá dentro de novo? E assim o fez, de novo e de novo, repetiu: só mais uma vez, então continuou.
Num desespero a consciência resolveu agir, alertando: todas essas pequenas coisas escondidas irão voltar, chegará um dia em que não terão mais flores nem estrelas. Finalmente ela decidiu parar.
E por um tempo até conseguiu. Vivia sua rotina, e levantava todos os dias de manhã, entardecia, chegava então o anoitecer, envelhecia. Envelhecia e era natural.
Passou-se um, dois, três outonos. Aumentava a cada dia o conhecido desagradável. No começo não sabia que era aquilo, mas depois desconfiou: era como antes. Uns dias pior, mais forte, mais doloroso. Tomava comprimidos, e ouvia histórias, tentava se distrair, tudo para não voltar à rotina e sentir o que teimava em não sair de dentro. Chegou a preferir o vazio, ou o escuro, ou a acusação de não possuir sentimentos. Mas aquilo já era demais: não aguentava. O piano dentro de sua cabeça tocava a música cada vez mais acelerada, fora do ritmo. O desespero agudo apertou. Sorriu debilmente. Caía num abismo cada vez mais profundo. Era o fim.
Abriu os olhos e correu, e já sabia que não poderia mais se conter, não havia mais como voltar atrás, o que tinha feito estava feito, o mar secou, o estômago estava cheio de coisas piores do que borboletas. Se encontrava dentro de um túnel sem poder escapar. Culpa de quem, não sabia, mas era agora, a hora chegara, iria acontecer: rasgou a camisa violeta, gritou de dor, enfiou o braço lá dentro, enfim conseguiu tirá-lo. Com as duas mãos e a pouca energia que ainda conseguia juntar, segurou o coração mole, abriu a Caixa e guardou lá dentro.

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